O Profº. Drº. Sérgio Ricardo Strefling, da Universidade Federal de Pelotas, irá compor a mesa temática: Representações da Paidéia Medieval sob a lente da Filosofia, no dia 22/08/2019, na XVIII Jornada de Estudos Antigos e Medievais. Sua apresentação tem o título: "A ESTUDIOSIDADE E O FIM ÚLTIMO DO SER HUMANO EM HUGO DE SÃO VÍTOR E SANTO TOMÁS DE AQUINO".
Resumo: A paidéia medieval retoma o pensamento grego e com a mensagem cristã (encarnação, redenção e ressurreição de Nosso Senhor Jesus Cristo) constrói o mais elevado pilar da educação que conduz à Sabedoria. A partir das artes liberais do trivium (gramática, retórica e dialética) e do quadrivium (aritmética, geometria, astronomia e música) tem-se o método que prepara a civilização ocidental. Neste estudo apresentaremos alguns tópicos da Didascalicon, de Hugo de São Vítor (1096-1141) e da Suma Teológica, de Santo Tomás de Aquino (1225-1274). Hugo de São Vítor, dentre sua volumosa obra, escreve Didascalicon de studi legendi, onde trata sobre a arte e o método de estudar. A virtude da estudiosidade exige humildade necessária para quem deseja aprender, exercício da memória, disciplina de vida e preocupação em ensinar o que se aprendeu. “Existem principalmente duas coisas por meio das quais alguém é conduzido ao conhecimento, a saber, a leitura e a meditação, das quais a leitura vem em primeiro lugar” (Didascalicon, prefácio). Hugo não visava formar pessoas para desempenharem determinadas funções e garantir determinada profissão, mas para atingirem o último grau da Sabedoria, a contemplação, com a qual, segundo ele mesmo: ”tem-se um antegosto nesta vida do que será a recompensa futura das boas obras...a máxima consolação da vida, quem a possui é bem-aventurado” (Didascalicon I,1). O professor de São Vítor visava uma formação integral que proporcionasse uma união cada vez mais profunda com o próprio Deus, fim último do homem. Ora, isso só é possível com a virtude da sabedoria que conduz à vida contemplativa que é a atividade mais essencial ao homem e, portanto, a única que lhe garante a perfeita felicidade, conforme já anunciara Aristóteles (Ética à Nicômaco, X). Hugo lembra-nos que três coisas são necessárias ao estudante: a capacidade natural, o exercício e a disciplina. O aprendizado começa a partir das coisas que são mais conhecidas, e através do conhecimento delas é que se alcançará o conhecimento daquilo que estava oculto. A leitura deve incluir a meditação, a memória, a disciplina e a humildade (Didascalicon III, 9-13). O filósofo conhece somente o significado da palavra, mas o significado das coisas é muito mais superior do que o das palavras, pois o significado destas foi instituído pelo uso, enquanto o daquelas foi fornecido pela natureza. O significado das palavras é a voz do homem, o das coisas é a voz de Deus aos homens. As palavras depois de pronunciadas perecem; as coisas, depois de criadas, subsistem. A voz frágil é a expressão dos sentidos; a coisa é a imagem da razão divina. Deve-se saber que, em qualquer atividade, duas coisas são necessárias, a saber, o trabalho e a razão deste trabalho, que de tal modo estão conectados entre si que um sem o outro se torna inútil ou menos eficaz. A prudência é melhor do que a força, pois quando não podemos mover um grande peso pela força, o conseguimos pela arte. Quem trabalha sem critério evidentemente trabalha, mas não progride e, como que açoitando o ar, dispersa suas forças ao vento. Há três coisas principais que costumam se opor aos estudos dos leitores: a negligência, a imprudência e a má sorte. Quanto ao primeiro destes três obstáculos ao aprendizado, isto é, a negligência, o leitor deve ser repreendido, quanto ao segundo, isto é a imprudência, deve ser instruído, e quanto ao terceiro, isto é, a má sorte, deve ser amparado (Didascalicon V, 5). O fruto da leitura divina é constituído de duas metades, pois ele tanto instrui a mente pela ciência quanto a torna bela pela moral; ensina aquilo que apraz saber e aquilo que convém imitar. Hugo ensina: “Desejai as alegrias da pátria celeste e procurai por quais méritos de justiça se chega a elas. Desejai chegar em algum lugar? Aprendei de que modo se chega ao que procurais” (Didascalicon III). Adquire-se o conhecimento de duas maneiras, a saber, pelo exemplo e pela doutrina. Convém, entretanto que aquele que tiver ingressado nesta via aprenda a se entusiasmar não só pelo brilho da eloquência, mas também pela emulação das virtudes, para que a pompa e o estilo das palavras não o agradem mais que a beleza da verdade. Para o filósofo cristão, a leitura deve ser uma exortação, não uma ocupação, e deve constituir os bons desejos, e não negá-los (Didascalicon V, 6). O método de estudo proposto por Hugo de São Vitor será desenvolvido na escolástica do século XIII, tendo seu ápice nos escritos de Santo Tomás de Aquino e tantos outros autores.
Santo Tomás de Aquino, dentre a sua volumosa obra, destaca-se a Suma Teológica, onde encontramos o roteiro ou itinerário daquilo que é necessário o homem crer, o que deve fazer e os meios para conseguir tal empreendimento. O homem deve crer no que Deus revelou (as verdades da fé), fazer o que Deus mandou (os 10 mandamentos) e auxiliar-se dos meios eficazes da graça (os sete sacramentos). Ao falar sobre o homem e seu agir, Santo Tomás, pergunta sobre o fim último de cada homem e todos os homens. Existe um fim último? Propõe-se o homem, com seus atos, alcançar algum fim último e supremo? Santo Tomás responde que sim, pois se o homem não quisesse e não intentasse o seu fim último, nada poderia nem intentar nem querer, por isso ordena todas as suas ações para a consecução do fim último ou de modo consciente e explícito, ou implicitamente em virtude de certa espécie de instinto racional. Este objeto tão desejado pelo homem é a sua própria felicidade. Acontece que estando em suas mãos escolher entre muitos bens, pode confundir os verdadeiros com os aparentes. Mas em que consiste objetivamente a felicidade do homem? Num bem superior a ele, e o único capaz de acumulá-lo de perfeições (Suma Teológica I-II, 2, 1-8). Este bem não consiste nas riquezas porque as riquezas são coisa inferior ao homem, e incapazes, por si mesmas, de aperfeiçoá-lo. Não consiste nas honras, porque as honras não dão perfeição, já a supõem, sob pena de serem postiças, e se são postiças nada são. Este fim também não consiste na glória e na fama, por serem, neste mundo, coisas frágeis e volúveis. Da mesma forma, não consiste no poder, porque o poder não se dá para o bem próprio, senão para o dos outros e está a mercê do capricho e do espírito de insubordinação. Tão pouco na saúde e na beleza corporal porque são bens inconsistentes e passageiros e, além de tudo, só dão perfeição ao exterior e não ao interior do homem. Tão pouco nos prazeres dos sentidos, porque são grosseiros demais, comparados com os gozos delicados da alma. Logo, o objeto da felicidade consiste nalgum bem que traz perfeição diretamente ao espírito, e este bem só pode ser Deus, Sumo Bem, Soberano e Infinito. Portanto, aqui Tomás nos encaminha para a necessidade da prática das virtudes. Entre elas, destaca-se, a sabedoria. Para atingir a sabedoria exigem-se outras virtudes, a saber, a estudiosidade. À virtude da estudiosidade opõe-se o vício da curiosidade ou dispersão. O studium é um labor, um esforço, sem o qual não se chega ao verdadeiro conhecimento do objeto. Aí se encontra o gaudium, a alegria e o repouso. O estudo implica, principalmente, a aplicação da mente a alguma coisa. Ora, a mente não se aplica a alguma coisa a não ser conhecendo-a. Por isso, primeiro o espírito se aplica a conhecer, depois, àquilo a que é levado pelo conhecimento. Assim, o estudo busca, primeiramente, o conhecimento; e, secundariamente, tudo o mais que, para ser executado, precisa ser dirigido pelo conhecimento (Suma Teológica II-II, 166, 1). As virtudes, porém, têm como objeto próprio a matéria que lhes concerne de forma primordial e principal. A fortaleza, por exemplo, tem como sua matéria os perigos mortais, e a temperança, os prazeres do tato. Portanto, a estudiosidade refere-se propriamente ao conhecimento. Conforme afirmou Aristóteles “todos os homens, naturalmente, desejam saber”. Ora, a moderação desse desejo é própria da estudiosidade. Por conseguinte, a estudiosidade é parte potencial da temperança, como virtude secundária, anexa à principal. Santo Tomás lembra que a prudência é uma virtude que complementa todas as virtudes morais. Por isso, na medida em que todas as virtudes devem ter o conhecimento da prudência, nessa mesma medida a estudiosidade, que se ocupa, propriamente, com o conhecimento, se aplica a todas as virtudes (Suma Teológica, II-II parte, 166,2). O desejo e o esforço no conhecimento da verdade, pode ser reto ou perverso. É perverso, quando alguém que tendendo aplicadamente ao conhecimento da verdade, junta a isso algum elemento mau, como seria aplicar-se ao conhecimento da verdade, para tirar daí motivo de orgulho. Também é perverso, quando o homem deseja conhecer as criaturas, sem se reportar ao fim devido, ou seja, ao conhecimento de Deus. Aqui, Santo Tomás, lembra Santo Agostinho que diz: “ao refletir sobre as criaturas, não devemos praticar uma vã e perecível curiosidade, mas utilizá-las como degraus para o que é imortal e permanente (Suma Teológica, II-II, 167, 1). Deve-se imbricar a curiosidade à estudiosidade para entender o debate permanente sobre a autonomia da pesquisa e sua relação com o fim último. A dispersão e a má compreensão do que seja a estudiosidade leva-nos aos abusos históricos, onde se pode confundir o conhecimento da realidade com meras informações e construções ideológicas.
Palavras-chave: Hugo de São Vítor, Santo Tomás de Aquino, estudiosidade, fim último.
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